Defendendo o legado de Marielle Franco no Brasil
Entrevista com Renata da Silva Souza, militante feminista e anti-fascista, defensora dos direitos humanos e deputada federal do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) no Rio de Janeiro.
Desde que Michel Temer chegou ao poder e ainda mais desde a presidência bolsonariana, o Brasil está sob o domínio da aliança ultraconservadora do “BBB” – bois (proprietários de terras), Bíblia (clérigos evangélicos) e… Balas (militares e policiais). Foi à violência desta última que Marielle Franco, assassinada em março de 2018, se opôs. Incansável defensora das populações marginalizadas e ativista feminista, foi deputada no município do Rio de Janeiro e defendeu incansavelmente os direitos dos afro-brasileiros e do povo LGBT. Sua luta continua quente como sempre com forças progressistas: Renata da Silva Souza, sua ex-chefe de gabinete e amiga íntima, testemunha isso.
Gostaria de observar que Marielle era vereadora do município do Rio de Janeiro, como culminância de uma experiência de mais de uma década na militância e no trabalho como assessora parlamentar, sempre dedicada a acolher, defender os direitos e a fortalecer as vítimas das mais diversas formas de opressões e os seus movimentos de luta.
Também queria incluir, como significante da chamada Bancada da Bala, a indústria armamentista nacional e internacional, cujos interesses sempre moveram o discurso e as ações de Bolsonaro na política. Os policiais e os milicianos são apenas a ponta desse grande negócio com faces lícitas e ilícitas e que fornece tanto para o Estado como para o crime organizado nas mais diversas formas, inclusive no varejo do tráfico e no esquema dos jogos de azar.
O assassinato de Marielle Franco e a série de ataques contra defensores dos direitos humanos fazem parte de uma dinâmica de repressão violenta contra personalidades que lutam pela justiça social e a inclusão de minorias. Até que ponto a presidência de Jair Bolsonaro, desde 2019, reforçou esta dinâmica?
Não é de hoje que o Brasil figura entre os países mais perigosos para defensores de direitos humanos e ambientais. Assim como no Brasil as populações negra e indígena, especialmente nas periferias das grandes cidades, no campo e nas florestas, sempre enfrentaram a criminalização e o genocídio, os defensores de direitos humanos também sempre foram alvos dessa violência praticada pelo Estado e pelos bandos armados de latifundiários, madeireiros, mineradores, contrabandistas, traficantes, milícianos e outros setores do crime organizado. Essa violência racista, de gênero e de classe se sofisticou ainda mais na ditadura empresarial-civil-militar que o presidente Bolsonaro tanto reivindica. A retomada dessa ditadura, que inclusive nunca chegou a ser plenamente desmantelada, é o notório projeto político desse ex-capitão. Em seu governo, vivemos um grave retrocesso das frágeis conquistas democráticas das últimas quatro décadas. Às violações históricas, soma-se agora a ampliação das restrições às liberdades de expressão e de imprensa, com movimentos de censura e perseguição a jornalistas, perpetrados inclusive pelo próprio presidente. Também é importante ressaltar o modo como a voz de Bolsonaro funciona de forma autorizativa e estimuladora das mais diversas violações de direitos humanos e, por consequência, do ódio, perseguições e ataques aos defensores de direitos humanos e ambientais.
A situação brasileira é relativamente bem coberta pela imprensa internacional: Bolsonaro é geralmente criticado por sua gestão calamitosa da pandemia, por suas observações fascistas e por sua relutância em combater o desmatamento na Amazônia. O racismo estrutural do Brasil – 5.000 afro-brasileiros mortos pela polícia somente em 2019 – tem menos impacto global em comparação com a situação nos Estados Unidos, por exemplo. Como você explica isso e o que pode ser feito a respeito? E cuais sao as caracteristicas desse racismo estrutural no Brasil ?
Precisamos lembrar que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, há pouco mais de um século, e o fez em circunstâncias nas quais o povo negro passou a ser identificado como inimigo interno a ser apartado, eliminado, encarcerado, discriminado. Negros e negras historicamente têm sido privados do acesso a direitos básicos como moradia digna, saúde, educação, trabalho decente, liberdade de expressão. Durante décadas, no entanto, sequer se fazia o debate sobre o racismo estrutural e os seus impactos. Até bem pouco tempo, prevaleceu no país o discurso de uma pseudo democracia racial. Uma mídia controlada por meia dúzia de famílias das velhas oligarquias brasileiras cumpriu o papel de forjar esse mito e de legitimar o papel do Estado policial na inventada e até hoje mantida guerra às drogas, na verdade uma pirotecnia para tentar justificar o encarceramento e o derramamento do sangue negro nas favelas, periferias e no campo. É negra a cor da maioria dos mais de 700 mil encarcerados no Brasil. É negra a raça de quase a totalidade dessas vidas jovens dizimadas pela polícia em nome de uma falsa e racista noção de segurança pública. O racismo estrutural americano não foi maquiado como o do Brasil. O enfrentamento lá começou antes e em outras condições, com a expressão mundial de nomes como Luther King, Malcom X, Angela Davis. Aqui no Brasil, a nossa luta existe também desde sempre, mas o apagamento dessa luta por aqui tem sido extremamente eficaz e por muito tempo. Só muito recentemente as coisas começaram a mudar e ainda assim muito lentamente. Vale refletir, porém, sobre como tanto nos EUA como no Brasil e em outros lugares do mundo, o racismo estrutural ainda é dominante, Creio que essa realidade só possa ser superada de modo estrutural com a superação do próprio capitalismo, cuja essência se baseia na exploração do homem pelo homem. Nesse sentido, enquanto houver capitalismo haverá a luta de classes e a subalternização de umas por outras. Por tudo isso, creio no socialismo como a via de uma possível vitória contra a barbárie produzida incessantemente pelo capitalismo.
Hoje, a identidade dos mestres do assassinato de Marielle Franco permanece um ponto cego no sistema judicial, em um contexto de impunidade onde os vínculos dos perpetradores com o governo brasileiro foram amplamente documentados. Cuales sao essos vínculos entre o poder político e as milícias? E de que forma e com que meios você mantém a pressão sobre o sistema judiciário brasileiro?
Sabemos quem atirou em Marielle. Foram matadores profissionais, integrantes de um tal Escritório do Crime, a serviço das máfias do crime organizado por dentro do Estado. Não por acaso, quatro anos depois do assassinado da minha querida amiga e companheira de lutas, não sabemos quem mandou matar e o porquê desse crime. Mas podemos afirmar, por exemplo, que foi um assassinato encomendado, um crime de máfia, caro, sofisticado, planejado e executado com perícia assustadora por profissionais. Um crime desses é auto-denunciatório, pois não seria possível sem uma cobertura dos braços políticos e institucionais da máfia que o contratou. Além disso, podemos afirmar que foi um feminicídio político. Marielle foi escolhida para morrer porque era uma mulher, negra, favelada, LGBT que ocupava a política pela esquerda socialista e em defesa dos direitos humanos. Não foi uma represália a alguma ação específica da vereadora, mas ao que ela representava no conjunto da sua identidade e da sua atuação na política do Rio de Janeiro e do Brasil. Esse feminicídio político foi um recado, uma intimidação dirigida às mulheres negras no pleno momento de ascensão de suas lutas para ocupar a política e lugares de decisão.
Sua luta política também se expressa no campo acadêmico. Como pesquisadora, você tem se interessado pelo impacto da militarização na juventude das favelas e formulou a expressão “feminicídio político” em referência ao brutal assassinato de Marielle Franco. Você poderia desenvolver este conceito?
Feminicídio político é um conceito formulado para que possamos dar conta da caracterização dos assassinatos de mulheres por serem mulheres que ocupam e movimentam a política, como o de Marielle, caso que me motivou a investir na pesquisa do pós doc na Universidade Federal Fluminense, no qual trabalhei esse conceito. No caso do Brasil, estamos falando de um crime específico que é o mais grave entre outros que se referem à violência política de gênero. Também sofremos na política tentativas de silenciamento, de desqualificação, ofensas e agressões verbais, assédios, inclusive sexuais, e também lesões corporais. No Brasil, nós mulheres conquistamos o direito ao voto há menos de um século, há 90 anos. Ainda hoje não passamos de 16% as mulheres eleitas e em exercício de mandatos políticos. Nós negras, somos em torno de 2% no Parlamento brasileiro. Além de raras, somos mal-vindas, incomodamos, especialmente no caso das mulheres organizadas no feminismo e à esquerda. Costumo dizer que erguer a voz e a cabeça para as mulheres negras na política não é só um ato de resistência, de coragem, é também o comprometimento com a luta contra as desigualdades de gênero, raça e classe. Em todos os ritos nas casas legislativas, há olhares e expressões corporais ameaçadoras, os nossos corpos negros são tratados como invasores que devem ser anulados. Tanto que as ações conduzidas no fazer político sofrem represálias ao extremo
Que ações de resistência você está realizando para continuar defendendo o legado e a memória de Marielle Franco?
Nosso mandato é absolutamente comprometido com as causas que eram as mesmas de Marielle e dos movimentos negro, feminista e em defesa dos direitos humanos.
Creio que honremos a memória de Marielle quando denunciamos o encarceramento e o genocídio negro, como no caso em que o então governador Wilson Witzel foi denunciado à ONU por ter acirrado ainda mais essa política dizimadora da juventude negra. Acredito que a vida de Marielle seja reverenciada quando nos articulamos com os movimentos do povo das favelas, da juventude negra, das mulheres negras e do povo LGBT, em defesa da democracia e contra toda forma de opressão e exploração de classe, raça e gênero. Considero, sobretudo, exemplar, o modo como não demos sequer um passo atrás após o assassinato de Marielle e como as suas sementes se multiplicaram e ampliaram, e vão continuar ampliando, a ocupação da política. Reivindicamos o legado de Marielle para erguer nossas cabeças de forma coletiva e organizada, com a necessária coragem para exigir um basta ao racismo e ao machismo estruturais, à destruição do meio ambiente, às violações de direitos humanos, a todos os feminicídios e aos feminicídios políticos. Temos formulado muitas leis e políticas públicas para o combate às desigualdades e o apartheid, mas nossa ação mais importante é espelhar os anseios e mostrar para todas as mulheres que é possível, sim, mudar essa realidade de tanto preconceito e violência. Lembro aqui do Ubuntu adotado por Marielle e que tanto nos inspira na forma de erguer a nossa voz para ocupar a política: “Eu sou porque nós somos”.